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O Estado e a Religião - D. José Policarpo

Descrição

“ESTADO E RELIGIÃO”

                                                             Intervenção de D. José da Cruz Policarpo, Cardeal-Patriarca de Lisboa na

Reunião de Associação dos Ex-Deputados da Assembleia da República

Lisboa, Hotel Le Meridien, 15 de Dezembro de 2006

Desta intervenção surgiu uma pequena publicação de 1200 exemplares.

 

 

"Começo por agradecer a honra deste convite, que aceitei com prazer. Considero que esta Associação de Ex-Deputados da Assembleia da República é uma mais-valia do Portugal de hoje, porque todos nós, ou muitos de nós, cruzámos caminhos nesta colaboração entre todos os portugueses que têm alguma coisa a dar à nossa sociedade. Passa por vós o ideal da consolidação do Portugal moderno.

Aceitei também o desafio do tema que me propuseram, porque todos estamos de acordo de que, no contexto actual do mundo, ele é um tema que certamente a todos interessa e que a todos desafia para uma reflexão criativa. Trata-se da relação actual entre os Estados e os grupos religiosos na construção da Paz, na busca de soluções positivas e dignas do homem, para o futuro desta aldeia global que é, hoje, a humanidade.

Serei o mais sucinto possível, quase com ideias telegráficas, pois cada uma delas poderia dar lugar a um largo desenvolvimento. Parece-me importante ver a evolução e ao mesmo tempo a pluralidade das concepções acerca do Estado e na sua relação com a sociedade.

Este é, entre os problemas contemporâneos, dos mais difíceis, na busca das soluções para os grandes conflitos, sejam eles de que natureza forem. É que as relações internacionais estão muito centradas nas relações de Estado a Estado, mas o sentido de Estado também não é homogéneo.

Um Estado democrático, como o nosso, sabe que as concepções de Estado não são homogéneas.

Por outro lado, o fenómeno religioso em si mesmo e no mundo contemporâneo, é complexo.

 

A natureza do Estado

Quanto à concepção de Estado: certamente estareis de acordo comigo em que o Estado de que temos a experiência e como nós o conhecemos e entendemos nas nossas sociedades democráticas, é, antes de mais, uma concepção recente, bastante recente mesmo, na história da humanidade. Ele próprio foi fruto de uma longa evolução cultural de que saliento os seguintes pontos constitutivos.

O respeito pela dignidade da pessoa humana – um caminho longo mas que se foi fazendo – e da sua igualdade fundamental: a igualdade de todos os seres humanos em dignidade.

O segundo ponto dessa evolução cultural, também ele doloroso e que nunca está completo, é o respeito pela liberdade, portanto, o culto, mas mais do que o culto, o respeito prático, nas estruturas sociais, pela própria liberdade.

Um terceiro ponto desta evolução cultural, é o sentido de comunidade, ou seja, aquela visão segundo a qual cada um é co-responsável por todos os outros, em que ninguém tem o direito de isolar a sua auto-realização do bem comum de toda a comunidade.

Finalmente, a convergência, também ainda não completamente feita, entre o conceito de Estado e o conceito de Nação. O conceito de Estado/Nação é também um conceito recente e ainda não completamente definido em todas as partes do mundo.

 

Evolução histórica da concepção do Estado

Lançando um olhar rápido à história, o Estado, durante milénios, identificou-se com o Príncipe – alguns homens da literatura chamaram-lhe o tirano – com o imperador ou equivalente. Já no dealbar do século XVIII, Luís XIV de França sintetizou bem esta equação milenar: «l’Etat c’est moi».

Neste quadro, as relações da sociedade com o Estado reduziam-se espontaneamente às relações com o poder dos príncipes. O objectivo destes era consolidar esse mesmo poder, habitualmente considerado absoluto, sem limites, e isso levava a que os seus objectivos estratégicos prevalecessem sobre os objectivos da sociedade e sobre esse grande conceito que nos últimos cento e cinquenta anos tem ganho foro, o conceito de bem comum.

É certo que a história da humanidade conhecera, aqui e acolá, alguns momentos em que a humanidade parecera ter uma outra compreensão de si mesma. Estou a pensar na República de Platão, que infelizmente, no caso concreto de Platão, foi mais um desejo do que uma prática implantada, dado que Platão era um filósofo; estou a pensar na I República romana, com o poder do Senado, rapidamente neutralizado e relativizado pelo poder dos imperadores; e em tempos mais recentes, com a invasão dos povos nórdicos e indo-europeus da Velha Europa, com forte sentido de tribo e que dão origem a formas sociais a que se chamaram e ainda hoje se chamam as “cidades-estados”, de que ainda há um exemplo ou outro, como flores a lembrar um passado, cidades organizadas como “cidades-estados”.

 

O Estado moderno, concebido como serviço à sociedade

O Estado moderno, fruto da evolução cultural que referi, altera completamente a relação da sociedade com os Estados, porque ela deixa de se reduzir a uma relação com o poder, por uma razão muito simples e muito óbvia: é que o sujeito máximo do poder já não é o príncipe; é a própria comunidade, é a própria sociedade. E sendo a sociedade o sujeito máximo do poder, a sua fisionomia e razão de ser deixam de centrar-se exclusivamente na relação com o poder. Nesta visão moderna da sociedade e do Estado, os poderes não se concentram nas pessoas, mas em instituições. As pessoas são chamadas a servir e não a usufruir do poder, e as instituições emanam da própria sociedade e estão ao seu serviço.

Além disso, há que registar a célebre distinção de poderes, que foi uma garantia da objectividade, da complexidade da sociedade, mas também uma segurança contra a concentração principesca dos poderes. Essa distinção permanece hoje, em todas as democracias modernas, em todas as constituições: o poder legislativo, o poder judicial e o poder executivo, distintos entre si.

O sentido de igualdade dos cidadãos que vem daquelas coordenadas culturais referidas, inspira, hoje, as leis, que deixam de ser os decretos da vontade do príncipe, mas emanações consensuais dos anseios e dos valores da sociedade na busca do bem comum. Aqui emerge, como característica fundamental das sociedades modernas, a importância da cultura como pano de fundo da concepção e da organização da sociedade, pois que uma comunidade alargada, sociedade ou nação, para exercer a função de inspiradora das leis e as regras do seu conviver comum, tem de ter uma compreensão comunitária de quem é, do que é, para onde vai. A isso chama-se cultura.

Do mesmo modo, o respeito pela liberdade impôs necessariamente o respeito pelo pluralismo, que praticamente era inexistente quando o Estado se confundia com o poder do príncipe pela simples razão de que o pluralismo é incómodo. Ao longo da história, talvez das atitudes mais irrealistas em que se caiu foi a de negar o pluralismo, quando o ser humano é espontaneamente plural. Mas foi regra comum – veremos depois, quando focarmos o problema religioso – porque se é o príncipe a governar, é mais fácil fazê-lo, imaginando que tudo é homogéneo.

Este pluralismo teve também várias expressões, que foram ganhando força institucional, como o pluralismo cultural, o pluralismo político, o pluralismo ideológico e o pluralismo religioso.

Isto mostra – e poderíamos concluir assim esta parte sobre o conceito e a complexidade do conceito moderno de Estado – que este Estado pelo qual vós lutastes e que é o consagrado nas democracias ocidentais, este Estado moderno, ou é democrático ou não é, pura e simplesmente, desaparece.

Todos os projectos de poder pessoal, mesmo quando se enquadram em esquemas democráticos, acabam por agredir, em última análise, esta noção democrática do Estado.

 


O fenómeno religioso no contexto da evolução do Estado

Nesta longa evolução, que me permiti referir em flash, como é que se situou o fenómeno religioso ou, se quisermos, as diversas religiões?

Também aqui nos ajudará uma visão histórica e não apenas do momento contemporâneo, até porque uma das dificuldades do momento em que vivemos é que, muitas vezes, temos a tentação de ler a história com as categorias que para nós são evidentes, são assumidas, são aquelas pelas quais lutamos e que, na melhor das hipóteses, praticamos.

A religião, que é das realidades mais ancestrais da humanidade – ela é espontânea na humanidade –, tem um pilar fundamental, que é a aceitação de um Ser supremo. Os nomes variam conforme as culturas, e esse é um estudo interessante, mas não vou agora maçar-vos com ele. De qualquer modo, é muito engraçado ver as diversas designações que ao longo da história das religiões e das culturas foram dadas à divindade, ao ser divino.

Mas, dizendo isto de uma maneira mais simples, um pilar fundamental da religião é a aceitação de um ser supremo, e esse ser supremo aparece – e estes são dados mais ou menos homogéneos, independentemente das tradições religiosas – com um desígnio, ou seja, o homem não lhe é indiferente, é alguém que tem um projecto, tem ideias, desejos, acerca da humanidade; e, por isso mesmo, aparece também com um poder quase sempre não discutido. Este ser supremo é normalmente concebido como um ser bondoso, que tem um olhar bondoso sobre o homem e sobre o universo. Na tradição bíblica é muito clara a ideia da misericórdia, do Deus bondoso e misericordioso.

Vendo este universo das religiões ao longo da história, também simplificando sem ferir a exactidão, poderíamos considerar três géneros de religião: umas a que me permito chamar religiões da natureza, em que a ideia de divindade emana da própria criação: é a beleza e a harmonia do universo que inspiram e fazem brotar a ideia de um ser supremo, que aí aparece como um ser criador, um ser que providencia, que garante que tudo corra bem, e sempre com a ideia de Senhor, de um ser que tem poder.

Temos neste grupo de religiões grande parte das da Antiguidade e algumas actuais, que aparecem fundamentalmente com duas características: os politeísmos (que são muito simples, pois, na medida em que é da natureza e da beleza do Universo que emana a ideia de um ser supremo, é perfeitamente normal que aquelas realidades que são definitivas para a vida do homem sejam divinizadas, como o sol, as estrelas, alguns animais que eram o núcleo da sobrevivência ou da economia desses povos primitivos, sendo, portanto, o politeísmo uma das características destas religiões da natureza), e também os panteísmos, que identificam o Universo no seu todo com a divindade, ou seja, tudo é divino, tudo é imagem e respiração do divino. Ainda hoje temos alguns panteísmos muito interessantes, que vale a pena conhecer, pois as sabedorias não nos são indiferentes, que têm alguns elementos que são convergentes com outras visões religiosas. Chamo a atenção, por exemplo, para o hinduísmo, nos seus diversos ramos, que é fundamentalmente um panteísmo, o que não exclui que seja uma religião que gerou uma cultura e que tem muitos valores que são universais.

Depois, a um segundo grupo de religiões chamaria as religiões reveladas, ou seja, aquelas concepções religiosas que não se limitaram a uma ideia do ser supremo que emerge e emana da própria beleza e grandeza, do próprio mistério da criação, mas em que os seus seguidores acreditam que, num determinado momento, a divindade se manifestou, ou seja, não se limitou a estar escondida e à espera que o ser humano supusesse que ela existia, mas manifestou-se.

Assim, a revelação é iniciativa da própria divindade, que em determinados momentos, diz quem é e o que deseja para a humanidade.

As grandes religiões reveladas, que alegam este fenómeno de acreditar que, num determinado momento, o seu deus entrou em diálogo, veio à fala, digamos assim, de uma maneira simples, resolveu vir ao encontro do homem, são três: o judaísmo, o cristianismo e o islamismo. Não é por acaso que estas são as religiões que hoje, no mundo, têm um peso mais significativo, quer numérico, quer pela influência que têm nas opções históricas que a nossa comunidade vai tomando.

Finalmente, a um terceiro grupo de religiões chamarei religiões históricas, as quais, de certo modo, se contrapõem às religiões da natureza. E o que é que as caracteriza? É um aspecto que, normalmente, não é muito comum as pessoas darem por ele: o conceito de divindade, de ser supremo nestas religiões não emana, em primeiro lugar, da criação do Universo mas emana da história concreta de um povo. Ou seja, começaram a sentir deus na sua vida e a primeira ideia de deus que se formou e se burilou, que levou a uma categoria religiosa, foi o deus que faz caminho com aquele povo numa história.

O caso concreto de Israel, da religião judaico-cristã, que não é único, é um caso muito curioso, porque os primeiros livros sagrados apresentam-nos um deus timoneiro, condutor de povos, lutador, um deus que vence batalhas, que acompanha o povo nas vicissitudes da sua história e só muda a partir de um determinado momento por influência das tradições primitivas, porque as religiões da natureza e a relação do universo criado com o ser divino é muito antigo. Tanto o judaísmo, que é mais antigo, como o cristianismo e como islamismo, todos beneficiam de tradições ancestrais, que são leituras sapienciais do universo e da situação do homem no Universo, e no caso de Israel é, num momento posterior, que se faz esta ilação: um deus tão poderoso e tão bom para nós, que nos acompanhou e nos salvou na nossa história, tem que ser o senhor do universo. Depois dos livros da aventura, da história, os livros que nos apresentam o deus criador têm duas características: por um lado, são uma síntese sapiencial de tradições antiquíssimas que existiam naqueles povos e, por outro lado, têm a vantagem de que situam a criação como um primeiro momento da história. Os historiadores discutem sobre o momento em que se pode falar de história. No caso concreto da Bíblia, a história começa na criação, por uma razão muito simples: é que, num determinado momento, eles perceberam que na história, a criação, era o primeiro acto significativo da gesta de Deus com o seu povo.

Estas três abordagens da religião estão todas presentes no palco da humanidade. Hoje, quando falamos do fenómeno religioso, de diálogo inter-religioso, da importância da religião na sociedade, na política, na cultura, na paz, temos de ter em conta que o fenómeno religioso tem esta complexidade inegável.

 

A Religião e o Estado

Agora, façamos a convergência dos dois termos, Estado e Religião. Como é que tudo isto se relaciona?

Durante milénios, exactamente porque o Estado se identificava com o príncipe, a relação das religiões, quer das pessoas religiosas quer dos grupos religiosos, giravam inevitavelmente à volta das relações com o poder. Mas nós, pessoas de Igreja, e todos vós, numa sociedade ocidental como a nossa, ou percebemos que isto mudou ou não percebemos nada.

Durante séculos, durante milénios mesmo, foi espontâneo que a verdade institucional destes grupos religiosos fosse fundamentalmente uma relação com o poder, com o poder que permitia, favorecia ou excluía. Houve de tudo! A relação com o poder tanto foi de favoritismo ou de permissão das religiões como foi de perseguição ou de exclusão.

E aqui surgem dados curiosos, que ainda hoje são relevantes: se eu acredito num Ser supremo, que me aparece com o conceito de criador, de bondoso, de providência, mas também de senhor, ele é, para mim, o poder supremo. Este é talvez o primeiro conflito na história das relações da religião com o poder. Um verdadeiro crente dificilmente aceita que um poder se sobreponha ao poder do seu deus. Isto teve várias expressões, por exemplo nas teocracias. Israel foi uma teocracia e durante um tempo foi uma questão polémica em Israel: se era legítimo, do ponto de vista religioso, ter um rei como os outros povos, ou se eles deviam ser, pura e simplesmente, administrados por profetas e por personalidades religiosas.

A atitude teocrática persiste na actualidade. Os estados islâmicos que impõem a lei religiosa como lei civil são disso um exemplo. Mas mesmo em democracias, de tipo ocidental, elas subsistem. Recentemente num encontro organizado em Teerão, convocado pelo governo iraniano, pondo em questão o holocausto e relativizando as razões para a existência do Estado de Israel, participaram rabinos de Israel. A explicação dos responsáveis de Israel explicaram esse facto, dizendo que se tratava de um grupo de rabinos radicais, que ainda hoje só aceitam o Estado de Israel se ele for governado por Deus.

Qual é hoje o grande problema e o grande desafio que se põem nos grupos do universo islâmico? É o desafio entre tendências para um estado moderno – havemos de concordar que ainda muito periclitantes e muito ameaçadas e, porventura, pouco assumidas –, e a tendência para a teocracia, a teocracia pura e dura, de Deus como a única autoridade com influência mesmo no poder político e no poder civil.

Esta dificuldade de um crente, que acredita no seu deus, aceitar um poder superior ao de deus, a quem todos os poderes se sujeitam, esteve na origem do primeiro grande conflito entre o cristianismo e os poderes estabelecidos – isto a título de exemplo que retiramos da história e não para fazer teoria –, por exemplo, do príncipe, no caso concreto do Império Romano. É que, o imperador romano tinha feito não sei se uma evolução se uma manobra, mas auto-divinizou-se e havia uma fórmula de vassalagem imperial a que eram obrigados os militares e os súbditos mais directos: quem tivesse o privilégio de se aproximar do imperador, em grego, a língua culta mesmo em Roma, dizia «César é senhor».

Simplesmente, dá-se o caso de a primeira confissão de fé cristã ser «O meu único Senhor é Jesus Cristo», pelo que o conflito foi inevitável. Quando o cristianismo se começa a difundir, há militares e altas personalidades da sociedade romana, gente que coabitava e frequentava a casa do Imperador, que se recusa terminantemente a essa fórmula. Esta é certamente a primeira causa do grande conflito entre o cristianismo e o Império. Isto levou a que os príncipes tentassem uma certa divinização, às vezes sem pudor... Não sei se hoje isso ainda existe, no passado existiu, com culto próprio. O poder do príncipe tinha origem divina, o poder era sagrado, era absoluto, era indiscutível, devia ser obedecido, porque era uma investidura de deus. Era o poder divino do príncipe.

 

A origem do poder

Aqui, na Europa, em tempos que não o nosso, porque a vida, graças a Deus, é suficientemente curta para podermos aguentar a história, estamos muito próximos do tempo da grande discussão que houve, na I Revolução Liberal, onde se lançam, no fundo, as bases daquilo que veio a ser a democracia estabelecida.

Na altura, a grande discussão dos intelectuais e das tertúlias e que fazia a oposição entre absolutistas e liberais era a de saber exactamente qual era a origem do poder. Os absolutistas condenavam qualquer parlamentarismo porque a origem do poder era divina e, portanto, era indiscutível; os liberais, exactamente com a ideia do poder emanar do povo, achavam que a raiz do poder era o povo, a comunidade.

Deste contexto foram surgindo, para os grupos religiosos e para os Estados – estamos ainda na época em que os Estados se identificavam bastante com o príncipe –, aquilo a que chamo duas tentações, sendo a ordem arbitrária: numa, os príncipes queriam a ordem religiosa (dava-lhes jeito se conseguissem ter também o poder religioso), e noutra os grupos religiosos também não se esquivaram a exercer o poder civil. O mecanismo é sempre o mesmo: o poder tem origem transcendente e é bom unificá-lo.

Aliás, durante muitos séculos – aqui, em Portugal, até à Revolução Liberal –, a unicidade religiosa era um factor decisivo de coesão social e de harmonia do exercício do poder. Há um velho princípio que vem desde a Idade Média e que ainda se aplica na Época Moderna, que, numa tradução livre, será: «convém que o povo tenha a religião do rei». Porquê? Porque a unicidade religiosa garantia muito a coesão da sociedade e, sobretudo, facilitava a governação.

Na nossa história, temos páginas que não são brilhantes, fruto deste princípio da unicidade religiosa como garantia da coesão do Estado, desde a expulsão dos judeus e outras que não vale a pena enumerar.

Por outro lado, tenhamos consciência de que estas equações geraram, no Ocidente, conflitos subsequentes sempre que a Igreja – podemos falar em Igreja ou Igrejas, porque o cristianismo se implantou como religião única durante muito tempo com este princípio de que estamos a falar e foi sempre maioritária – caiu na tentação (e nem sempre foi por sua vontade exclusiva) de se imiscuir no poder temporal, tendo pago muito caro por isso, pois geraram-se conflitos e clivagens de que só a história, depois, nos ajuda a fazer as sínteses.

Queria terminar esta parte dizendo que esta evolução histórica, pelos conflitos que gerou, acabou por ser também o elemento dinâmico, dialéctico, da própria evolução da história no seu todo.

No campo dos princípios, e aqui digo no campo dos princípios porque a realidade vai-se fazendo... é convicção minha que nenhuma destas situações, que tenho vindo a descrever, mudaram no dia tantos do tal, por decreto. Tudo isto resulta da evolução da sociedade e da evolução das resistências dos grupos.

 

As Igrejas no Estado democrático

No campo dos princípios, a mudança é radical quando a equação da sociedade é democrática e se chega à concepção do Estado democrático. A relação, como já disse, deixa de ser com o poder, este não emana de Deus e, portanto, não é absoluto; emana da sociedade e à sociedade pertencem os grupos religiosos, que, como outras realidades sociais, podem conhecer relações conflituosas com o poder. Mas estas não devem existir numa sociedade democrática, exactamente porque o poder, numa sociedade democrática, emana do realismo da própria sociedade. Todavia, um certo bem-estar e um certo «respirar fundo» pode levar a Igreja, em determinados momentos da sua história, não digo a aliar-se com o poder mas a aproximar-se dele. Em linguagem popular, diz-se que nenhum de nós pode dizer que «desta água não beberei», e recentemente tivemos, em Portugal, um exemplo, que a história há-de julgar: as relações da Igreja com o Estado Novo. A este respeito nem sempre o que normalmente se diz foi exactamente assim. O que aconteceu foi que o período anterior tinha sido complicado para a Igreja.

Tinham sido tempos difíceis e é natural que as pessoas respirassem fundo e dissessem: «Ah, agora temos liberdade, podemos fazer, podemos agir, podemos pregar, já não nos queimam as igrejas». Estes juízos são espontâneos, são normais na vida das comunidades.

Uma outra característica deste período é que o Estado não se afirma como o poder do príncipe mas emanado da sociedade; ele afirma-se, fundamentalmente, como um serviço do bem comum e não como um tomar conta da sociedade. É a ideia do Estado-serviço, estrutura de serviço, e é por isso que os servidores do Estado se chamam ministros. Ministro, em latim, significa, o servidor, o servo, aquele que serve.

O Estado afirma-se fundamentalmente como um serviço e não deve ter a ânsia do poder; o poder é o poder fazer, é o poder procurar o bem comum, é o poder necessário para procurar o bem comum na harmonia da sociedade.

Criou-se, assim, a meu ver, um conceito que é necessário nas sociedades democráticas, o conceito de sociedade civil, expressão que acho menos exacta. A sociedade somos todos nós e a Igreja faz parte dela. Simplesmente, a Igreja, como grupo religioso organizado, aparece também com uma capacidade muito grande de se organizar para servir e tem o seu poder próprio. O poder que ela tem, para além do poder sagrado, que é para quem acredita e quem o aceita, é o de poder servir, e mais nada!

Aliás, uma das revoluções que está a ser feita, porque também na Igreja estas coisas não se resolvem por decreto, é uma caminhada, é uma evolução, e foi das grandes intuições do Concílio Vaticano II: a Igreja serva, a Igreja que não está à procura do poder mas, sim, à procura da melhor maneira de servir.

Aliás, na Concordata, recentemente assinada entre o Estado português e a Santa Sé, logo no preâmbulo e depois nos primeiros artigos – e aí tive a alegria de verificar que o consenso era total entre os negociadores por parte da República e os negociadores por parte da Igreja –, o princípio básico das relações da Igreja com o Estado é a cooperação para, em conjunto, melhor servirem o nosso povo, a nossa sociedade, cada um na sua área específica, com a sua cooperação. Trata-se da arte de bem servir e de melhor servir.

 

Liberdade e pluralismo religioso

O respeito pela liberdade e o cultivo da liberdade foi talvez das componentes da personalidade humana aquela que tem sido mais pregada (não digo que tenha sido a mais praticada, mas a mais pregada) nos últimos 200 anos, na Europa, e confronta-nos a todos, como uma novidade e também uma exigência nova para os grupos religiosos. Falo em grupos religiosos para não estar só a falar da Igreja. Sabemos que hoje temos no terreno várias etiologias de grupos religiosos e isto confrontou-os também com a realidade do pluralismo religioso.

A Europa teve uma experiência a que poderemos chamar traumática, a da Reforma, que desencadeou uma multiplicidade de grupos vários dentro do próprio cristianismo. A experiência da Reforma foi traumática. Não nos podemos esquecer que, na Igreja Católica, o Concílio de Trento foi fundamentalmente uma reacção de contra-reforma, e isso percebe-se no contexto histórico do tempo.

Hoje, estamos todos confrontados com o ter de conviver com o pluralismo religioso. Já pelo Estado enquanto tal e pela compreensão da sociedade, reconhece-se inevitavelmente que o Estado não pode ser confessional. Todos vós sabeis que o Estado confessional emanava daquele outro princípio da vantagem da unicidade religiosa para o bom exercício do poder: nada melhor do que o Estado decidir qual era a sua confissão religiosa. Como também era uma maneira de o Estado acabar por ter poder dentro da confissão religiosa. Com a liberdade e as suas consequências no pluralismo da sociedade, levado até – deixai que use a expressão – ao extremo da liberdade religiosa ao admitir o pluralismo no campo religioso, o Estado só podia ser neutral.

Chamou-se a isto laicidade do Estado, todos o conhecemos. Mas também não foi pacífico, resultado dum simples aperto de mão, após um almoço simpático, num hotel. Foi feito na dialéctica da própria sociedade, e ao ritmo dos acontecimentos. E se a Igreja tinha queixas em relação à sociedade, a sociedade tinha, na sua memória, realidades e episódios que não esquece, porventura fruto da influência demasiadamente grande da Igreja no temporal. Esta afirmação da neutralidade do Estado, ou da laicidade do Estado, na nossa linguagem constitucional, num primeiro momento foi também como que um grito de libertação.

Afonso Costa prometeu que numa geração acabava com a Igreja e que libertaria Portugal dessa marca e da sua influência. Parece que não é assim tão fácil como isso…

Hoje, e de há uns anos a esta parte, as pessoas mais lúcidas e até correntes teóricas – sobretudo em França tem surgido uma vasta literatura, a que eu gosto de chamar de uma laicidade positiva – têm aceitado não ver nesta laicidade do Estado nenhuma ofensa nem qualquer agressividade em relação aos grupos religiosos, concretamente à Igreja a que pertenço. Aceita-se que todos os grupos religiosos têm direitos na sociedade democrática e mesmo o princípio da cooperação (daí o princípio da nossa Concordata ser importante) com esses grupos religiosos para o bem comum. Não se trata de agradar a este ou àquele quiçá por motivos de simpatia, mas em nome do bem comum, que, a meu ver, é o grande conceito, muito desenvolvido pela Doutrina Social da Igreja e que é o conceito decisivo para a harmonia da sociedade.

Neste contexto, a cultura emerge com uma importância relevante, enquanto compreensão do homem, da sociedade, como projecto de civilização. A cultura como quadro em que tudo isto se deve situar.

Conta-se de Cardijn, fundador da JOC (Juventude Operária Católica), que um dia um jovem sacerdote, muito entusiasmado com os sucessos que Cardijn tinha junto dos operários daquele tempo, lhe perguntou: «Qual é o seu segredo? Você pesca à linha ou pesca à rede?». Ele olhou-o em silêncio durante um momento e respondeu-lhe: «Não percebeste nada. O que é preciso é mudar a água». E é!

A cultura é a água em que estes diversos peixes, que somos nós, nas diversas expressões da sua autenticidade e da sua liberdade, navegam. E isto por razões muito simples: é que hoje as questões de civilização, de definição da identidade da pessoa e de uma comunidade têm, quer gostemos quer não, uma componente ética decisiva. Houve um período em que as pessoas fugiam um pouco da ideia da importância da ética, mas a ética é uma componente decisiva, é, digamos assim, o quadro que me atrai; é, no fundo, o que quero ser como homem ou como mulher, e gostaria de ajudar a sociedade a que pertenço a sê-lo.

E todos nós sabemos que as religiões tiveram e continuam a ter um impacto muito grande na definição ética. Hoje não o podem fazer sozinhas, têm de o fazer, na sociedade democrática, em diálogo com os outros grupos, em diálogo com a sociedade como um todo.

Neste campo da ética – assunto que não vou desenvolver, até porque não me esqueço que estamos num almoço e não numa sala de conferências –, penso que era absolutamente importante que, na sociedade plural em que vivemos, as diversas instâncias inspiradoras da ética, que vão da religião à filosofia, à política, à experiência histórica e à experiência adquirida, pudessem convergir em tudo quanto é possível.

Ninguém espera, hoje, na nossa sociedade, que as instâncias do Estado venham impor ou sequer favorecer coisas que são explicitamente religiosas, que são obrigações religiosas. Há dias escrevi que ninguém está à espera que o Estado imponha a obrigação dos cristãos irem à missa ao domingo. Este é um exemplo para mostrar que há coisas que são deveres religiosos que ninguém, hoje, está à espera que sejam impostos pelo Estado.

Gostava muito que caminhássemos para aquilo a que costumo chamar de universal humano, para valores que sejam aceites e cultivados por todos os homens e mulheres de boa vontade. Estamos ainda longe disso.

 

Os grupos religiosos e a construção da harmonia da sociedade

Pediram-me que falasse sobre o problema actual. Fá-lo-ei, embora já o tenha vindo a referir.

Penso que é um problema actual mas político, e essa não é a minha missão. Os fundamentalismos actuais estão a relativizar ou a contestar as funções do Estado. Temos uma ordem internacional, do próprio Direito internacional, muito centrada na relação Estado a Estado. Não é espontâneo aceitar, ainda hoje, que um Estado dialogue com outro grupo, seja ele qual for; e, no entanto, a relativização do Estado é progressiva, e isto preocupa-me. Não sei qual a evolução seguinte, como é que se vai chegar a uma via construtiva de consensos na humanidade contemporânea, com toda esta diluição da autoridade dos Estados por grupos intervenientes, infelizmente, pela força.

Quando falo com os meus irmãos muçulmanos – não levem a mal que dê este exemplo –, com quem tenho uma óptima relação, chamo-lhes sempre a atenção para a responsabilidade histórica que têm nos seus países. Vivem entre nós, num país que lhes dá todos os direitos de cidadania, numa democracia total e deviam não só beneficiar disso, mas serem protagonistas nos seus países das vantagens desta cidadania total.

Se me permitis, porque estou a falar com ex-deputados que já não têm responsabilidades directas, posso dar-vos conselhos. Se fossem Ministros, Presidentes da República ou Deputados teria de ter mais cuidado. Direi que há concretamente uma bilateralidade da relação dos Estado europeus com os Estados muçulmanos e outros, que devia ser um pouco mais exigente.

Compreende-se que um grupo de cidadãos esteja num país como o nosso, que dá todos os direitos de cidadania, porque é num país em que há liberdade, mas nos seus países os portugueses nem sequer possam reunir-se para rezar o «Pai Nosso»? Aqui há qualquer coisa a nível de equilíbrios, a nível de relações internacionais, que tem de ser conseguido.

Os fenómenos religiosos, hoje, são complexos. Desde as fortes estruturas comunitárias à multidão dos crentes individuais, com pouca estrutura comunitária, as relações com estes grupos são completamente diferentes.

Por ocasião do conflito suscitado pelo discurso do Papa em Regensburgo, e não o comentando aqui, fiz esta reflexão: Bento XVI, antigo Cardeal Ratzinger, antigo Professor da Universidade de Regensburgo, considerou que tinha o direito, legítimo num cidadão e professor brilhante, de ir à sua universidade dar uma última lição. E lembrei-me do Cardeal Cerejeira, que, quando fez 70 anos, foi a Coimbra dar a sua última lição e não criou grandes problemas porque fez uma lição sobre Clenardo, o que não era propriamente um tema polémico. Bento XVI falou, e a Igreja Católica foi toda posta em questão, porque há uma figura que a representa, há uma hierarquia. Se fosse o grande Ayatola de Teerão, dir-se-ia que isso só respeitava aos xiitas… Qualquer grupo, mesmo organizado, desliga-se daquilo que os outros dizem…

Temos que reconhecer que ainda hoje há grupos religiosos que privilegiam a relação com o poder, porventura a conquista do poder. Não tenho dados objectivos, e por isso, aquilo que vou dizer é ao nível jornalístico, mas consta-me que o grande projecto de Bin Laden é o de constituir um califado universal. Ora, a figura do califado tinha desaparecido da organização das comunidades islâmicas há muito tempo.

Califado universal implica a relativização completa dos Estados, sendo os seus primeiros inimigos a abater os chamados laicos muçulmanos, os estados modernos, sendo, portanto, o califado universal uma conquista do poder por essa via.

No Ocidente, corremos um risco, quando falamos de religiões, mesmo na análise do que se passa no mundo, de «meter tudo no mesmo saco», mas não cabe tudo «no mesmo saco». Entre a responsabilidade de grupos comunitários que sabem o que querem – que sabem qual é a sua responsabilidade com os outros na busca do bem comum – e estas multidões imensas, por quem tenho todo o respeito (isto que vou dizer não exclui o respeito que tenho até pela radicalidade do seu gesto religioso), aquelas peregrinações a Meca são sempre realidades que me causam calafrios. Porque são multidões de indivíduos. Nada mais! São multidões de indivíduos que, no seu ideal religioso, na sua caminhada, têm a obrigação de ir a Meca.

Será possível um diálogo inter-religioso? Fala-se muito nisto como solução e caminho para a paz. Eu desejo-o muito, e tenho-me empenhado nisso, como muitos de vós sabeis, até em iniciativas internacionais. Mas inclino-me para dar prioridade ao diálogo intercultural. Porque o diálogo inter-religioso choca sempre com os dogmas de cada religião e, francamente, para eu entrar em diálogo com os muçulmanos, em nome de que é que hei-de abdicar de uma coisa em que acredito, da minha fé?! Mas dou-lhes o direito de reagirem como eu!

Portanto, o diálogo inter-religioso tem escolhos muito grandes, enquanto o diálogo intercultural pode situar-se na base do tal universal humano, dos tais contributos que podem vir de todas as partes para que a humanidade progrida numa linha de sabedoria, de paz, de entendimento mútuo, na busca da harmonia.

Gostava de terminar deixando uma pergunta que me acompanha persistentemente. Hoje, há uma certa tendência para considerar o grande problema dos conflitos actuais como tendo as religiões, mais concretamente uma religião, no centro das tensões. Pergunto: as religiões estarão, realmente, no centro das actuais tensões mundiais?

Tenho tendência para pensar, que na base das tensões entre Oriente e Ocidente, vistas de forma global – o que inclui a economia, as políticas de longo prazo e também categorias ancestrais de compreensão mútua destas duas partes do mundo – não é a rejeição, por parte dos nossos irmãos muçulmanos, do cristianismo. Eles dizem que sim, chamam-nos infiéis – coisa de que não gosto, mas nós também já lho chamámos –, mas o que eles rejeitam não é a religião, é o Ocidente. E isso deve-nos fazer pensar a todos, sobretudo deve-nos fazer rever tudo o que são políticas de domínio, seja económico, seja científico, seja militar. Deve-nos fazer pensar muito sobre tudo e não simplificar, na tentação da solução militar, que é uma tentação muito grande de um Ocidente que, devido à sua tecnologia e à sua história, se armou «até aos dentes» para o que desse e viesse, para o pior. E estamos agora a ver que isso não resolve nada!

Não quero excluir o direito de intervenção militar, quando ela é justa, mas tenho uma forte interrogação sobre se o Ocidente estará na boa linha, sobretudo se tivermos em conta que o grande problema do mundo é, hoje, uma tensão entre o Ocidente e o resto do mundo. Enfim, que Deus inspire quem tem o poder, mas sem confiar demasiadamente na solução militar.

Que Deus ilumine quem tem que decidir para que perceba, de uma vez por todas, que a solução militar, hoje, não é solução.

Muito obrigado. "

 

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